23 fevereiro 2009

Personagens da Peça – que também é filme

Benedito: - jovem do interior, ingênuo, puro na verdade. Não ver maldade em nada, em ninguém. Tipo raro nos dias atuais. Seus trejeitos lembram muito a simplicidade e pureza de Mazarope, bem como a candura de Grande Otelo. Aliás, estes dois personagens do cinema brasileiro podem ser uma fonte inspiradora para o Ator. Benedito é morto de apaixonado por Lionor, a rosa de seu jardim. Por ela é capaz de tudo. Enfrenta céus e terras para ficar ao seu lado. Dotado de uma pureza sem precedentes. Nunca ouviu falar de camisinha; Não percebe que São Pergentino é o Diabo disfarçado. Tem na figura de Sinhá Costureira e do Padrinho pessoas a quem deposita grande confiança; são seus confidentes, com quem desabafa, tira dúvida, até pedir conselhos de como usar a camisinha. No filme é o único personagem que perpassa os dois mundos simbólicos do filme: o do teatro e do cinema, criando uma espécie de metalinguagem ativa. Quando está no palco tem o rosto pintado de branco, com as maças rosadas, roupa bem irreverente. Ao perpassa para o mundo real, através da cortina azul repleta de estrelas, essa mascara desaparece, ficando apenas as maças rosadas e uma parte da roupa que estava usando.  

Lionor: a linda flor do jardim de Benedito. Pense numa moça inteligente, aplicada, sensual e bonita. É por dentro de tudo que acontece no mundo. Ninguém consegue lhe passar a perna. Letrada, domina diversos assuntos. Em se tratando de coração, é apaixonada por Benedito a quem jurou eterno amor. Não tem olhos pra mais ninguém. Fala que transar, só com camisinha. Prevenção é tudo. Lionor acontece no filme, somente no teatro, lá no picadeiro do circo, ao contrário de Benedito que toda vez que entra na cortina de céu estrelado transcende para imaginário mundo real. Bem por isso Lionor é um grande acontecimento nesta narrativa cinematográfica. Ela é teatrocinema. Um fundido no outro. Representa também a formada mulher conduzindo o destino do casal. Afinal ela consegue fazer com que Benedito mude de atitude, prática e comportamento, na medida em que ele sai à procura de quem possa ensiná-lo o que diabo é essa tal de camisinha? Volta tempo depois consciente, Lionor se dá por feliz e tudo é consumado. 

Diabo: Ardiloso, metade bode, metade homem, bode e homem ao mesmo tempo. Enganador, criador de ilusões. Hora aparece aqui, depois ali... Encanta Benedito ao ponto de fazê-lo crer que é São Pergentino. Representa o atraso, o pensamento medieval daqueles que sempre encontram desculpa para não usar camisinha. Meticuloso nas palavras, nos gestos, no olhar. Surgem sempre das profundezas ao redor de muita fumaça. Como pertence ao Plano do Divino transita entre os a camada filme e camada teatro com certa fluidez própria dos divinos. Hora está aqui, hora ali.  Andam no meio da multidão é ninguém nem o percebe. Somente ele percebe a todos. Seu objetivo é convencer Benedito a não usar a camisinha. É repreendido por Nossa Senhora. Expulso do Paraíso por São Pedro, Santo Antônio, São João. 

Sinhá Costureira: madama, mulher fogosa, coroa enxuta, gostosa, uns peitão, boazuda. Agenciadora de meninas.  De dia faz costura, de noite  faz festa, muita festa. Mulher vivida, Sinhá Costureira não leva desaforo pra casa. Devota de São Jorge, o Guerreiro. Madrinha do Jovem Benedito, por quem tem um amor quase de Mãe. Mulher vivida, fala da camisinha com muita intimidade e segurança. Moram com ela quatro jovens “as meninas de Sinhá”, os olhos da Costureira. Deitar com elas, só se for partido alto. Sinhá Costureira é parte integrante do mundo teatral, porém toda sua misancene se dá em um ambiente natural, como se fosse à extensão do mundo teatral transformado agora em cinema. Mesmo toda misancene acontecendo fora do ambiente palco/circo as reações de público vêm do circo. Para eles o ambiente natural de Sinhá Costureira é apenas um cenário pra lá de realista. 

As meninas de Sinhá: Duas brancas e duas morenas. A alegria da casa, os olhos de Sinhá. Só não santas porque em fim. Alegres, extrovertidas, passam o dia de flozô, à noite sorrindo para os freqüentadores da casa.  Nunca desobedecem à madama. 

Anjo da Guarda: alegre, brincalhão, representante direto do Divino na ação cinematográfica. Traz consigo todos os trejeitos da molecagem cearense. Sem moralismo, esclarece a Benedito que é preciso usar o preservativo sim. Abre os olhos do moço para que não se deixe enganar pelo Diabo, disfarçado de São Pergentino. A aparição do Anjo no filme começa com um lindo desenho animado. Ele chega voando, fazendo piruetas, por trás de Benedito que está sentado no lajedo de Pedras. Aos poucos a animação vai se transformando em realidade No final da cena, o anjo sai voando, também em desenho animado. Benedito sai correndo atraz dele e aparece no palco. Embora toda essa misancene aconteça fora do ambiente onde a peça começou (palco/circo) as reações de público são da platéia que está no circo. Para ele aquela belezura de lajedo não passa de um puta cenário pra lá de realista. 

Desorientado Ator: aquele tipo de ator, super competente, versátil, galã, pontual, nunca atrasa. Mas naquele dia, logo naquele dia, foi tirar um cochilo e o sono pegou. Quando deu conta, tava em cima da hora de entrar em cena. Correu, atravessou o palco inteiro, entrou em cena gritando, com o figurino ainda em mãos... e ai? A parte dele já havia passado. Que penhinha. Só o que parece trivial aos olhos do espectador ganha forma. É nesse exato momento em que a platéia do circo percebe que o anjo era Anjo mesmo, que o Diabo era Diabo mesmo e desesperada sai correndo, derrubando tudo, perdendo tudo, numa ave-maria, num valei-me Deus, num pedido de socorro medonho.  É quando surgem em cena os Santos juntamente com Nossa Senhora, um dos ápices do filme. Mas isso é outra coisa. 

Os Santos: Antonio, Pedro e João: no começo do filme aparecem disfarçados de Vereadores junto a Comitiva dos Poderosos de Juatama. Nesse momento  representam o Divino na Terra. N ao estão ali para julgar, mas a procura do Diabo que desceu a terra pra fazer maldade a Benedito. Estão nem ai pra Quarto Besouro, Lionor, Prefeito, pra festa, nada disso tem importância para eles. Como pertencem ao Plano do Divino transitam entre as camadas (teatro e filme) num piscar de olhos. Se encontram com Nossa Senhora, momento ápice do filme, rico em plasticidade e magia. Momento grandioso representa uma virada na diegése. Os Santos restabelecem a ordem. A vida vence a morte, metaforicamente falando.  

Nossa Senhora: a enviada de Deus para colocar o Diabo no lugar. Sua aparição no filme é algo fabuloso. Vem flutuando, repleta de luz, muita luz. Representa diretamente o Deus Pai todo poderoso. Pode julgar, desconjulgar. A ela tudo foi permitido. Estabelece na história um momento ápice. Mesmo com todos os arquétipos de Nossa Senhora imaginada pelo inconsciente coletivo (meiga, dócil, cabeça inclinada, pálida, quase transparente) tem um certo ar regional.   

Padrinho: representa o Saber e o Ter. Tem dinheiro e livros espalhados por tudo que é canto da casa. Dos livros saltitam cédulas servindo de marca-texto. O falsário. O colecionador de tudo. Leu e continua lendo até hoje. Profundo conhecedor da cultura popular. Cordelista. Adora Luis Gonzaga. Quando o assunto é dinheiro emprestado nunca está. Mão de vaca. É assim de afilhados. Benedito é um deles. Com sabedoria, humor e simplicidade, ensina o moço a usar a camisinha. Graça a ele Benedito consegue ficar com Lionor. Igual a cena da Sinhá Costureira a misancene do Padrinho se dá em um ambiente natural, porém, as reações de público vêm do circo.  O ambiente natural da casa do Padrinho é para eles apenas um cenário hiper realista. 

O Homem que zurra: típico homem do interior metido a engraçado, que faz o povo rir de suas marmotas. 

Grupo de Reisado: alegre, coloridos, vibrantes dançam no pátio da igreja. Cortejam a noiva com suas espadas quando vai ao altar. 

Mãe de Santo: simpática, afetuosa, envolvente, faz oferenda pra Oxum abençoando os noivos e os fieis. 

Pernas de Pau: jovens de Juatama. Do alto carregam felizes uma faixa onde está escrito: Juatama é Patrimônio Folclórico da Humanidade! 

Padre: (que celebra o casamento) Da ala progressiva da Igreja, representa o novo vencendo o velho. Tem idéias avançadas. É a favor do uso do preservativo nas relações sexuais. Ecumênico reúne todas as religiões nas suas celebrações. Radical, entrega aos recém-casados um preservativo simbolizando a Aliança da Vida Eterna. Será expulso da Igreja com certeza. Os fiéis vibram. Lionor e Quarto Besouro se beijam. O Padre os abençoa.    

Personagens: esses seres imaginários que fazem transpirar Atores

Aqui, vou tentar descrever em linhas gerais de como imagino os personagens d’O Auto da Camisinha, no desejo de ajudar o elenco a compor melhor suas personas e também para que a produção, arte, cenografia, figurino, trilha sonora visualizem melhor o universo do filme, suas cores, seus modos de interpretação, sua linguagem, as camadas que irão estabelecer o Auto da Camisinha enquanto Filme, enquanto Teatro, ou onde esses dois mundos se completam, criando aquilo que a academia determina de metalinguagem. Esses traços por mim esboçados que sirvam apenas de linha inspiradora.

Para facilitar a localização no roteiro vou descrevendo os personagens por ordem de entrada. 

1. Os Garotos da Cena de Abertura: típicos garotos do interior. Aqueles que passam o dia na rua, brincando, re-inventando a Arte de brincar. Tudo que tem ou tudo aquilo que lhes aparece à frente se transforma em objeto lúdico. Tão nem ai se é brinquedo de loja ou uma caixa de fósforos encontrada por acaso na rua ou ainda uma garrafa pet transformada num potente carro de fórmula1. O que importa aqui é brincar ao sabor da imaginação. Eles representam as raças brasileiras. 

2. Os Homens na janela do atelier de Lionor: típicos moradores de cidade de interior. Calmos, pacatos, ingênuos, observadores. Vão passando, vêm algo diferente do cotidiano deles e param, observam, comentam, opinam. Depois saem espalhando pra toda a cidade o que viram. Quem tem um pé no interior e outro na cidade grande, sabe muito bem ao que me refiro. 

3. Pessoas que confeccionam adereços no Atelier: jovens de grupos da cultura popular; são os guardiões da memória e das manifestações artísticas culturais de Juatama. Responsáveis pela ambientação das ruas, barracas, circo para chegada do Quarto Besouro. Sabem com propriedade defender a tradição sem se fecharem para o novo. São vibradores, entusiastas, preparam a decoração de Juatama com dedicação e energia. O clima que eles impregnam ao Atelier é de muita alegria e descontração. São pessoas de plena confiança de Lionor.   

4. Lionor: a mais bela de Juatama. Diretora da Cia. de Teatro local. Uma mulher verdadeira em seus sentimentos. Líder, alegre, divertida, sempre astral. Sua beleza faz os homens suspirarem. Sua personalidade forte impõe respeito e limite. Ninguém avança o sinal sem sua permissão. Ai de quem se atrever. Aceita entregar a chave da cidade a Quarto Besouro e seduzi-lo porque sabe dos benefícios que o almejado título vai proporcionar a Juatama. Para se tornar cúmplice na trama certamente impôs suas condições. Esperta não dá murro em ponta de faca. Ao ver Quarto Besouro  algo arrebata seus sentimentos, ficando chafurdada por dentro. Amor a primeira vista? Sincera ao que sente não hesitou em transparecer ao cavaleiro tão nobre sentimento. Folcloreira fez questão de se casar próximo do ciclo natalino.  

5. Motorista: o fiel escudeiro de Quarto Besouro. Além de motorista também se faz de Secretário particular. Chega a ser uma espécie de zelador “cri-cri” do Grande Homem. Zela tudo: do vestir ao sentir, do comer ao beber. Se pudesse respiraria por ele. É como se fosse à sombra do outro. Carne e unha. Sempre grudado, pregado no Besouro. Às vezes chega a incomodar. Sua marca é ir à frente abrindo o tapete – que traz sempre debaixo do braço - para Quarto Besouro passar. Para ele, se Quarto Besouro pisar no chão, é como se uma grande desgraça se abatesse sobre suas cabeças. Está sempre limpando a roupa e colocando no lugar a peruca de Quarto Besouro.   

6. Quarto Besouro: Profundo conhecedor das manifestações folclóricas brasileiras. Representante do Instituto Folclórico Nacional – IFAN. Carrancudo, o Homem é um abuso só. O mau humor é acentuado por conta de uma azia crônica que o persegue desde sua primeira juventude. Tem ódio mortal quando trocam seu nome. Fica fumando numa quenga. Estudou nas melhores universidades do Brasil e Europa. Fala diversas línguas. Culto, intelectual, chega a ser pernóstico. Careca, tem um cacoete terrível que é acenar para seu fiel Motorista para que o mesmo coloque no lugar sua peruca que insiste em ficar de banda. Foi para Juatama decidido a negar o título almejado. Ao ver Lionor, é como se o mundo abrisse em cores a sua frente. Apaixonado só pensa em tê-la nos braços, cobri-la de beijos e carinhos e realizar todos seus desejos: inclusive de dá a Juatama o título de Patrimônio Folclórico da Humanidade. Ao vê-la contracenando no palco chega a ter crises de ciúmes ao olhar Benedito se insinuando para Lionor. Se pudesse voaria no pescoço do ator e o esganaria ali mesmo, na frente de todos. Gostaria de ter se casado na cidade grande, com todo luxo e pompa que sua condição financeira pode proporcionar. Apaixonado cedeu ao pedido da noiva se casando na pitoresca Juatama. 

7. Grupo de Atores Mambembes: a partir de agora este grupo passa-se a chamar Trupe `Caba de Chegar, em homenagem a esta respeitável companhia de Fortaleza. Vem da capital para encenar na hora do casamento da Quadrilha a espetáculo “O Auto da Camisinha”, cujo Lionor é diretora e atriz principal. Andam em um trem-rural, carregada de adereços, cenários, figurinos, tudo embalado em caixotes de madeira. A cenografia desta Rural-Trem causa admiração e desperta curiosidade por onde passa. Foi assim desde sua fundação. A cada parada, arrasta multidão, aplausos, sucesso absoluto. Encena O Auto da Camisinha ha pelo menos 10 anos. 

7. População de Juatama: pense num povo hospitaleiro e festeiro. Tem um orgulho de Juatama invejável, verdadeiro sentimento de pertença. Sabe o que significa a cidade receber o Título Patrimônio Folclórico da Humanidade. Para isso acontecer não mede esforços. Homens, mulheres, jovens, crianças e idosos vão às ruas, fantasiados, produzidos, vibrantes. Quando é anunciado que Besouro está adentrando a Juatama, eles gritam, balançam suas bandeirolas de mãos, correm atrás do carro, se amontoam para ouvi-lo falar. Nunca se vira algo desse tipo em Juatama. Lionor para eles é uma espécie de referencia.  

8. Manifestações Folclóricas: nesse momento o filme presta uma justa homenagem às manifestações folclóricas nordestinas, aquelas de raiz, que falam da gente, de nossas origens sem didatismos ou paradigmas pré-estabelecidos. Na tela o que viremos em cena são as matrizes formadoras de nossa Identidade Cultural. Grupos de bumba-meu-boi, pastoril, reisado, maracatu, Mateus, catarinas, jaraguás, burrinhas, pernas-de-pau, violeiros, repentistas, vaqueiros, palhaços, artistas de rua, etc, formando uma expressiva cocha de retalhos do nosso folclore.   

9. A Comitiva: característico da política brasileira este tipo de Comitiva   ainda é presente nos dias atuais tanto nas grandes cidades, porém, assume realce quase caricatural nas pequenas cidades do interior. Geralmente é composta pelos que estão no Poder Executivo, Legislativo, Judiciário,  Religioso e/ou próximo dele. Defende interesses próprios. O coletivo em segundo, último plano mesmo. Para eles o povo é simplesmente massa de manobra. Na diegése d`O Auto da Camisinha ela – a  Comitiva -  tem papel fundamental. Reunidos na calada da noite, às escondidas, tramaram para que Lionor – por ser a mais bela de todas as Juatamenses – entregue a chave da cidade a Quarto Besouro, seduzindo-o. Se Besouro não der o titulo almejado por todas manifestações populares ali expostas, que o dê pelos dotes pessoais da envolvente Lionor. Essa trama – acordaram eles – não pode ser perceptível por parte da população em momento algum. Um pacto selado, um acordo entre cavaleiros e damas, “os poderosos de Juatama”. É tanto que eles agem de maneira sutil, só no olhar, discretamente, quando se aproxima o momento de Lionor entregar a chave da cidade a Quarto Besouro. Portanto, sse jogo duvidoso de interesse tem que ficar visível somente do ponto de vista do espectador que assiste ao filme, nunca do povo de Juatama.   

A Comitiva de Juatama (os poderosos ou os que estão ligados a eles diretamente) é composta pelas seguintes autoridades: 

Prefeito: o grande populista. O Poder Executivo. Nunca diz não, mas não cumpre com o sim. Eloqüente, falante, todo verborrágico. Falso moralista tem princípios fundamentados na Honra, Tradição e Família. É um bajulador, puxa saco, de toda e qualquer autoridade acima dele. Se for para se dá de bem, faz de tudo. Inclusive deixar que “uma certa” Diretora de Teatro entregue a chave de “sua cidade” ao  ilustre visitante. Aproveita-se da posição de Prefeito para dá em cima das mulheres. 

Primeira Dama: a esposa fiel do marido infiel. Sempre que aparece em público está ao lado dele, de braços dados, sorrindo, feliz, retrato perfeito da família perfeita. Segura as mãos dos populares com as pontas dos dedos, aquele sorriso sem graças. Faz parte da Legião de Maria. Não perde um missa aos domingos. Ficou possessa quando soube que Lionor iria entrar a chave da cidade ao Quarto Besouro e não ela. Afinal quem é a primeira dama de Juatama? Para não ficar por baixo, exigiu que o cerimonial inventasse algo para ela ofertar ao ilustre visitante. Inventaram uma cesta com quitutes e petiscos juninos. A maior gaff, considerando a insuportável azia de Besouro que só em ver aquela badeja vai às alturas. 

 Padre: o articulador. Faz da batina sua arma. O Poder Religioso. Exerce forte influencia sobre os párocos de Juatama. Em nome de Deus cumpre papel de intermediador nos conflitos familiares, políticos e sociais. Uma das peças principais na confabulação da trama. Ardilosamente estimula Lionor a provocar ainda mais Quarto Besouro no instante que  entrega a chave da cidade. No decorrer do filme consegue evitar uma grande tragédia, que tudo vá por água, quando o Puxador da Quadrilha trava uma espécie de duelo – típico dos filmes de Western – com Quarto Besouro. Não celebra o casamento de Lionor e Besouro porque foi o próprio Bispo – recomendado pelo Papa - quem veio celebrar o respeitável enlace matrimonial, tendo em vista o nível da autoridade que estava se casando. 

Freira: branquinha, quase transparente. Aonde o Padre vai, ela vai atrás, bem coladinha. Atenta a tudo, principalmente a cada gesto do Padre, por quem, guarda um desejo fatal. Está sempre sorrindo, de bem com a vida. Nunca cansa verdadeira esposa do Senhor.  

Delegado: o Homem da Força Armada. Narigudo. Austero com os ladrões de galinha, diplomáticos com os filhos dos ricos. Na delegacia bate no preso, em casa apanha da mulher. Nunca prendeu alguém sem saber de quem se tratava. Antes de tomar qualquer decisão consulta sempre o Prefeito, o Padre e o Juiz. Se não fosse Homem de farda, seria um pobre Zé Ninguém. Usa revolver entre as pernas para mostrar que tem sexo grande, que é macho de verdade. 

Juiz: o Homem de Toga. O Poder Judiciário em pessoa. Nunca vimos tão mais Positivista com este. Gordo, careca, folgado. Só quer saber de aplicar a Lei e suas sentenças impiedosas. Vive de conchavos com o Prefeito, Delegado, Padre. Não se conforma que ele - na condição de Juiz da Comarca de Juatama - não poder outorgar o título que o lugarejo tanto desejar e necessita. Passa a maior parte do espetáculo dormindo. Ronco profundo e assustador.  No casamento é a mesma coisa. 

Comerciante: o mão de vaca. Não vende fiado a seu ninguém. Nem a própria mãe. Só pensa em dinheiro, a semana inteira. Rico não sabe mais onde guardar tanta grana. Enricou explorando o povo de Juatama. Para dá uma de bonzinho sempre no natal e semana santa distribui roupas usadas e gêneros alimentícios doados aos mais carentes. Sabe que ao conquistar o titulo de Patrimônio Folclórico da Humanidade, Juatama vai se desenvolver mais e mais, sobretudo na área do turismo comercial. Por conta disto pensa em abrir uma rede hoteleira no município. Inclusive já pediu ao Prefeito a doação de um terreno na entrada da cidade. Comprá-lo nem pensar. 

Fotógrafo: aquele que registra tudo. Nada escapa de suas lentes. Seus dedos estão sempre a disparar registrando o menor dos gestos, uma mais insignificante ação. Fura todos os esquemas para obter o melhor ângulo, a melhor fotografia. 

Repórter: pense numa baixinha danada de metida. A personificação do Quatro Poder. Não espera, cria o furo de reportagem. Sai com cada pergunta embaraçosa que deixa qualquer entrevistado a ver navios. Taquigrafa, com uma caderneta em mãos, parece mais uma máquina de escrever, tipo aquelas Olivet automática quando foi lançada no mercado nacional. Registra todos os passo de Quarto Besouro. Faz uma dupla engraçadíssima com o Fotografo. A casa e o botão. 

As Ex-misses: ai se o tempo voltasse atrás viramos como elas já foram belas. Mas o tempo é máquina de fazer monstros mesmo. Não tem renew, botox que dê jeito. E olha que se tratando de ex-misses, truque de maquiagem e mesa de cirurgião plástico é fixinha. Em número de cinco estão sempre na eterna posse de miss, perfiladas, peito pra fora, barriga pra dentro, sorridentes, faixa com o titulo de miss chegando primeiro. Cada qual mais pra frente que a outra. Invejam a beleza de Lionor, chegam a ter ódio dela por ser a Rainha do Folclore, mas ódio mortal tem mesmo é dela entregar a chave da cidade ao Quarto Besouro. Um insulto para quem dedicou uma vida inteira a representar Juatama mundo a fora. Se não fosse o acordo, rolaria a maior baixaria. Na presença de Quarto Besouro ficam elétricas, gestos iguais, uníssonos, o mesmo compasso. Excitadas abrem e fecham seus leques formando uma eloqüente coreografia. Chegam a ficarem úmidas quando Besouro beija suas mãos. 

Os Vereadores: em numero de três são os Santos (Pedro, Antonio e João) enviados por Deus para ver de perto o comportamento ético e moral dos habitantes de Juatama, uma vez que almejam tão importante título. Disfarçados de Vereadores observam tudo, com seus olhos aquilinos. Imparciais, apenas observam. Como são a manifestação do Divino na terra sabem tudo o que irá acontecer. Por isso se mantêm na deles, só observando. Não interferem em nada. Ficam temerosos toda vez que o Diabo aparece em cena tentando Benedito. Uma peça de roupa ou um adereço que eles carregam faz o elo entre os dois universos. 

A Banda de Música: tradicional Banda do interior, toca com esmeros dobrados tradicionais toda vez que recebe ilustres personalidades em Juatama. Farda na goma, instrumentos brilhantes. Uma proeza de banda municipal, digna de Juatama. 

Popular: é só quem encontramos nessas festas de interior. Quer nem saber quem é o aniversariante. O importante é comparecer. Não é nem pela comida e bebida, é pelo movimento. É amigo de todos, quando bebe fica falante, os “s” no mundo. 

Bêbado desordeiro: vi muito quando era menina no sertão de Quixadá. Franzino, bebeu todas o dia inteiro, mal consegue ficar em pé, quanto mais tirar um briga. Bebum, desbocado, atrevido, puxa da bainha a faca só pra ser preso. Desarmado é conduzido à delegacia onde permaneceu o resto do fim de semana. 

Mestre/Puxador de Quadrilha: pense num baixim porreta de arretado. Sabe de todos os passos de Quadrilha tradicional e moderna. Prefere à tradicional, por está mais ligada as suas raízes. Já foi noivo durante 20 anos da Quadrilha de Juatama. Hoje é Mestre/Puxador com muito orgulho. Ao desafiar Quarto Besouro com faca em mãos, imaginou está numa cena dos velhos filmes de western. Como não é homem de levar desaforo pra casa, partiu pra cima do convidado com gosto de gás. Se não fosse o Padre teria provocada uma verdadeira tragédia e todos os planos virão por água abaixo. Com um senso de humor invejável, desfez do grande mal entendido arrancando de todos uma forte gargalhada quando admite em público que é corno.   

Quadrilha Junina: grupo de Quadrilha Oficial de Juatama. Ganhadora de prêmios em festivais juninos da região e fora do Estado. 

Grupo Regional: típico grupo regional, toca o autentico forro-pe-de-serra com os clássicos instrumentos sanfona, triangulo e zabumba. Acompanha a Quadrilha Oficial de Juatama em todas suas apresentações. 

Mais que uma Cortina azul repleta de estrelas – a passagem entre mundos

A peça de teatro acontece no filme quando finda a dança da Quadrilha junina, na tenda de circo. Na verdade o casamento da Quadrilha nada mais é que a encenação de O Auto da Camisinha. Quando o Puxador grita: - atores, vamos começar, o que era cinema se transforma imediatamente em peça de teatro, com personagens, cenários próprios, realistas, específicos de cada cena. 

O Clima do filme agora é outro, a atmosfera é outra, tudo se transforma como um todo. A fotografia, a arte, a iluminação e a interpretação. Sempre com a preocupação do não exagero. Temos que eliminar os excessos, apesar de ser uma peça de teatro é cinema que estamos fazendo. 

Em alguns momentos o tablado onde acontece a peça se transforma no ambiente real, com personagens fictícios, nascidos momentos antes no tablado do picadeiro. Essa transformação/passagem se dará através do pano de fundo do palco, uma cortina de circo, azul, repletas de estrelas, sugerindo um céu infinito por onde entram Lionor, Diabo e Benedito (quem mais faz uso dessa passagem) desaparecendo e surgindo logo em seguida em cenário natural, como por exemplo, na Casa de Sinhá Costureira, na Casa do Padrinho, na Gruta do Diabo, no Lajedo do Anjo. 

Essa magnífica passagem em forma de cortina circense, localizada no fundo do palco, é antes de tudo a extensão da fantasia teatral para o mundo “real”. Real entre aspas, porque na verdade é também teatral. É preciso que todos tenham a clareza de que mesmo Benedito ao entrar na cortina e surgindo milésimo de segundo depois na Gruta do Diabo, na Casa da Sinhá Costureira, do Padrinho ou na presençca do Anjo-da-Guarda em um lajedo de pedras, esse cenário “natural” é uma extensão continuada do palco. Aliás, é o palco estendido na sua plenitude. 

Do ponto de vista da platéia que está no circo encantada, assistindo o casamento da quadrilha, ou seja, a encenação d`O Auto da Camisinha a impressão é de que apenas o cenário mudou, deixou de ser aquele cortina azul de céu estrelado passando a ser o ambiente natural (in  lócus) de cada personagem.   

Neste “outro mundo” - extensão da fantasia teatral, Benedito surge sem o rosto pintado de branco e as maças vermelhas– tradicional máscara de quem faz teatro de rua – e seu figurino não tem a mesma composição de quando esta no palco/circo. Tanto a composição do ator, quanto do figurino e maquiagem devem apenas fazer referencia daquele outro lado. 

Desenho Animado

Voltando a pergunta inicial. Onde começa o filme? Onde começa a peça? E o que tem haver desenho animado nessa história, meu Deus? 

O filme, com gente viva, vivíssima, começa bem no “comecim” mesmo. A primeira imagem que vemos é de uma câmera em grua alta, deslizando sobre o telhado de uma velha estação de trem, descortinando uma cidade quase deserta, passa por um grupo de crianças brincando, encontra dois homens numa janela conversando, enquanto observam no atelier pessoas confeccionando motivos folclóricos. 

Ao findar esta seqüência - com gente viva, de carne e osso, surge na tela um lindo desenho animado descrevendo em uma panorâmica aérea o vale dos monólitos de Quixadá, totalmente verde. A câmera passeia, flutua nas nuvens indo até Juatama que está toda enfeitada, população na rua fazendo festa para a chegada de Quarto Besouro.  

 A animação terá momentos bem específicos na película, ora pontuando o inicio de algumas cenas, ora o seu final. O desenho animado em O Auto da Camisinha servirá como uma camada de passagem entre o mundo real e o teatral, a exemplo do início da peça O Auto da Camisinha, anunciada por desenho de anjos barrocos, puxando a cortina que se abre magicamente; Se fará presente na cena do Anjo e seu encontro com Benedito. Em outras situações a animação aparecerá com elemento plástico e estético, como as flores que surgem na tela por onde passa o carro de carro de Quarto Besouro,  ou na a fogueira e os fogos de artifícios, nas estrelas e no céu em nuvens anunciando a chegada de Nossa Senhora, nos delírios de Quarto Besouro ou ainda na borboleta alada que passeia durante o casamento de Lionor e Quarto Besouro.

A Interpretação & a Escolha do elenco

Por ser uma Comedia – quase que de costumes, a interpretação dos atores não pode ser naturalista. Nem por isso, caricatural, exagerada. Nada disso. Tudo deve ser mínimo, cada gesto, cada olhar, cada fala, cada ação e re-ação. Tudo pianíssimo, para dentro, contido, porém sem perder a força interpretativa, a vida, a presença cênica, aquela que contagiando o outro se deixa contagiar também. 

Mesmo quando o filme entrar no universo da peça de teatro, os atores mesmo que fazendo teatro (dentro de um filme), deverão ter a clareza e saber distinguir que não estaremos fazendo uma peça de teatro para ser exibida nas salas de cinema, mas estamos fazendo cinema, limpo, puro como água na fonte. Um produto audiovisual que tem como suporte uma sala escura, projetor e uma  tela de 4 X 7, que deixa tudo grande. Além  disso tem ainda o som Double espalhado nos quatros cantos da sala permitindo ao telespectador ouvir o menor suspiro, o mínimo gesto.

Atores, atrizes, imaginem uma liga (bem forte) puxando vocês para dentro cada vez que falarem, abrirem os braços, as pernas, os olhos, a boca. O caminho é esse. Uma liga puxando vocês pra dentro. 

Quando escolhi cada ator, atriz para os papeis determinados, é pela oportunidade que tive de observá-los, estuda-lo, e conhecer cada um de vocês interpretando nas telas, nos palcos, no dia-a-dia. Então, me é bastante confortável tê-los no meu elenco. Basta eu fechar os olhos que vejo Nadia fazendo a Lionor, Carri o Quarto Besouro, Brasilino o Benedito, Sidney o Motorista, Marlene a Sinhá Costureira, Marcos o Diabo, Vanessia Nossa Senhora e assim por diante. 

Gênero Comédia

O Desafio se apresenta  pela opção do Gênero Comédia. A primeira vista, parece simples. Nem tanto. Por se tratar de um filme comédia, pra que o mesmo não corra o risco de ser uma grande e grotesca coisa caricatural. Logo, direção, atores, produtores, técnicos, devem ponderar na concepção de cada parte que compõem o universo do filme para não levemos as telas algo exagerado por simplesmente se tratar de uma comédia. Nada de pecarmos pelo excesso. Essa não é a proposta do filme. 

Por ser uma comédia, tudo deve esta no limite. E este limite é o mínimo. Nada de sobras. As cores, as texturas, as locações, figurino, arte, cenografia, fotografia, produção, tudo deve confluir para que na hora da ação o Diretor possa junto com a fotografia e os atores materializarem cada seqüência do filme, como ela foi concebida, sem risco de cair no exagero, no superlativo. A comédia quando mais econômica mais cômica se torna. 

O que é filme e o que é teatro

No filme O Auto da Camisinha o telespectador irá se deparar com dois universos distintos ao mesmo tempo complementares. Cinema e Teatro neste filme é quase extensão um do outro, como superposições de camadas, camadas de peles quase tênues, uma a uma superpostas delicadamente, fotograma por fotograma dando vazão ao outro, como se fosse necessário morrer um para o outro nascer. Então, onde começa o filme, onde inicia a peça? É teatro filmado ou é cinema teatral? Que espécie de metalinguagem se pretende alcançar misturando, fundindo essas duas variantes artísticas?

Essas e outras indagações permeiam meu cotidiano deste quando retomei o projeto. Não pretendo com O Auto da Camisinha, criar uma referencia paradigmática, também não desejo levar para as telas o samba do “criolo” doido.